2.3.6 - O envelhecimento: mudança de estatuto

 
O relacionamento do idoso com o mundo caracteriza-se pelas dificuldades adaptativas, tanto emocionais como fisiológicas; a sua performance ocupacional e social, o pragmatismo, a dificuldade para aceitação da novidade, as alterações na escala de valores e a disposição geral para o relacionamento objectual. No relacionamento com a sua história o idoso pode atribuir novos significados a factos antigos e os tons mais maduros da sua afectividade passam a colorir a existência com novos matizes; alegres ou tristes, culposas ou meritosas, frustrantes ou gratificantes, satisfatórias ou sofríveis... Por tudo isso, a dinâmica psíquica do idoso é exuberante, rica e complicada.
 
Freud afirmava, com notável sabedoria, que os determinantes patogénicos envolvidos nos transtornos mentais poderiam ser divididos em duas partes:
Aqueles que a pessoa traz consigo para a vida;
Aqueles que a vida lhe traz.
 
Na velhice isso fica mais evidente ainda, de um lado os factores que o indivíduo traz consigo na sua constituição e, do outro, os factores trazidos até ele pelo seu destino. O equilíbrio psíquico do idoso depende, basicamente, da sua capacidade de adaptação à sua existência presente e passada e das condições da realidade que o cercam.
 
 
 
Disposições Pessoais
 
As Disposições Pessoais são os elementos referidos por Freud ao referir-se àquilo que o indivíduo traz para a vida, ou seja, a sua constituição. Ajuriaguerra, ao afirmar que "envelhece-se como se viveu", certamente estava pensando nos traços pessoais da nossa constituição que acabam por ficar mais marcantes com o envelhecimento. A casuística da prática clínica tem mostrado, embora nunca de maneira absoluta, que os indivíduos portadores de dificuldades adaptativas em idade anterior envelhecem com maiores dificuldades.
Se os acontecimentos existenciais eram sentidos com alguma dificuldade ou sofrimento na idade adulta ou jovem, quando a própria fisiologia era mais favorável e as condições de vida mais satisfatórias e atraentes, no envelhecimento, então, quando as circunstâncias concorrem naturalmente para um decréscimo na qualidade geral de vida, a adaptação será muito mais problemática. Portanto, está correcto dizer que quanto melhor tenha sido a adaptação da pessoa à vida em idades anteriores, melhor será sua adaptação no envelhecimento.
 
Por outro lado, alguns autores observaram uma significativa melhora em poucos casos de neuroses com o envelhecimento, facto também observável na prática psiquiátrica. Isso mostra-nos, de facto, não haver uma desestruturação psíquica no envelhecimento mas sim, uma alteração estrutural na dinâmica psíquica, novos arranjos psicodinâmicos e nova arquitectura afectiva distinta da anterior.
 
Nestes casos, um ambiente pleno de carinho e atenção em torno do idoso, juntamente com uma serenidade afectiva própria da fase que este atravessa favoreceriam o acomodamento emocional com o envelhecimento. Esta "serenidade afectiva", necessária à acalmia de algumas neuroses no envelhecimento, seria uma circunstância emocional mais tranquila, possivelmente ausente em épocas anteriores e, cuja falta, poderia contribuir para a manutenção de um antigo quadro neurótico. Tais alterações estruturais benéficas são mais observáveis em alguns casos de transtornos obsessivos, histéricos e receosos, porém, não devem ser entendidos como via de regra.
 
Mais comum na velhice, entretanto, é o agravamento e não a melhoria das alterações psíquicas anteriormente constatadas. No caso das neuroses do idoso, assim como nas demais idades, o transtorno decorre do grande esforço interno em conseguir uma satisfação existencial e uma adaptação à realidade.  
 
Assim sendo, mesmo diante de circunstâncias existenciais favoráveis para alguns idosos, tal satisfação adaptativa não seria conseguida devido à certa fragilidade emocional própria de seus traços afectivos. Nestes casos não é, absolutamente, a vida ou as circunstâncias ambientais correlacionadas à senilidade quem estaria proporcionando condições necessárias para a eclosão da sintomatologia neurótica mas sim, as condições de personalidade prévia do paciente. Outros idosos, possuidores de melhores condições de adaptação (personalidade), não manifestariam transtornos emocionais diante de iguais condições de vida.
 
É por causa disso que se envelhece como se viveu.